Madrugada
O frio me faz pensar. O mundo celta. A neve a fogueira. Mulheres
solitárias e estrelas. O silêncio no ar e a saudade. Um mundo de mulheres e
crianças. Maridos e namorados longe, em batalhas. No calor, tudo é mais fácil.
As canções ecoam nas montanhas, misturando ao rugido do mar. Mesmo sem amar, os
corpos estão satisfeitos e cansados pelas plantações, e os celeiros logo estarão
repletos, e os deuses felizes. Mas no inverno o mal anda pelos vales e montanhas,
e o escuro da noite traz o mal nas mentes, e o medo ronda as casas. Crianças
caladas buscando o calor dos mais velhos, que contam as lendas guerreiras. E no
silêncio nasce a canção que fala da volta dos guerreiros que encheram a vila de
risos e festas. Momentos de promessas aos deuses da guerra e a mãe terra. Os
ventres secos, e o leite jorrando nos seios, onde as crianças que nasceram no
final da primavera saciam a fome, saboreando o elixir da vida. Algumas não
sobreviverão. Mas existe a esperança de ouvir os sons amados, e o relinchar dos
cavalos, latidos dos cães quando os homens estão chegando. Sons que enchem a
vida de sorrisos e esperanças. A dúvida se ainda terão de volta seus amores.
Sobreviveram a batalha, ou sumiram para a morada dos deuses? A velha senhora
mãe de muitos está calada olhando o fogo. Começa a revirar as cinzas, e o silêncio
se torna pesado. Grunhidos soltos no ar, vindo do fundo da mente. A velha
sacode as mãos e geme. As crianças encolhem, buscando as mãos de suas mães; elas
sabem que algo está acontecendo. Corações acelerados, esperando a voz da
pitonisa que olha as cinzas. A cabeça tomba para a esquerda, e lágrimas
escorrem de seus olhos. Levanta e se dirige à nora mais nova, quase uma criança,
que a olha com seus olhos cor de anil. Inocência, expectativa, e dor. Dor da dúvida,
esperando o que virá. A mãe da velha toca seu ventre e suspira. Abraça a menina
e exclama. As mulheres escutam em silêncio o que a mulher sopra aos ouvidos,
com murmúrios sofridos. “Seja forte filha, seu futuro chega com sons dos cavalos.
Sua vida não mais será na terra de seus pais, nem dos nossos deuses. Irá para a
terra sem água salgada, e não voltarás. Mas seu filho retornará a esta casa, e
será abençoado e grande, mas não será filho do homem que ama. Tempos de noites
chegaram, e os que conhece não mais verás. Toma meu colar e usa, e quando
chegar a hora, dê a quem de direito deverá usar”. A menina mulher, estarrecida
e trêmula, toma e coloca o colar de couro com patuás e símbolos, e o carrega em
cima de seu coração... Tantos anos se passaram, e ela continua a usar o colar. Olha
seus filhos nascidos tão longes do lar. Cercados por pessoas e um mundo
desconhecido. Sabe que não voltará à terra amada. Chama o filho mais velho, e
nesta noite, conta seu destino, e o manda de volta para seu povo, com o colar no
pescoço. Lágrimas salgadas sente em sua boca, gosto do mar. Reclina sua cabeça,
e adormece. Vê seu amado estendendo-lhe a mão, e a levando para a terra de seus
antepassados, onde o riso e os seus a esperam. A primavera cobre os bosques e o
som de gaitas chega aos ouvidos. Os deuses estão sorrindo. Ainda hoje vejo
aqueles olhos azuis, cor de anil. Continuam a me olhar...
Dione Fonseca
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